Humanizarte

Em 2010, convidados pelo psicólogo Luiz Gonzaga, um grupo de veteranos do projeto Terapeutas da Alegria decidiu fazer um trabalho diferente dentro do IPQ . O serviço de Psicologia do IPq aceitou com entusiasmo que não teríamos o papel de recreadores, mas poderíamos construir um projeto junto com os moradores, uma forma de atenção humanizada, onde eles seriam elementos ativos, e não passivos, na construção das ideias. Firmamos então um contrato, onde o IPq se comprometia a garantir transporte, lanche para a equipe e local e materiais necessários ao trabalho (de forma limitada). O grupo trabalharia nos semestres letivos, sendo o primeiro semestre considerado experimental. O grupo passou a visitar o IPq semanalmente e eventualmente batizou-se esta ação de Arte no IPq.

A primeira forma de trabalho, escolhida em conjunto com os moradores, foi através do desenho. Utilizando tinta guache em papel pardo. Tal como no TA nossa atenção não estava voltada para o produto, mas para o processo, ou seja, mais importante que produzir um desenho para mostra a um público, estávamos observando como o trabalho poderia contribuir para o bem estar das pessoas e para o grupo como um todo. Optamos por uma criação coletiva, trabalhando em uma grande mesa, formada por uma grande mesa formada pela junção das várias mesas menores existentes na sala de atividades da psicologia do IPq. Ali construíamos juntos, participantes do Humanizarte e moradores do IPq, o painel coletivo que ia se desenvolvendo a cada semana.

O público com quem trabalhávamos era formado em sua maioria absoluta por pessoas com alto grau de dependência, algumas cadeirantes, com grandes dificuldades de expressão e mobilização, seja devido aos problemas enfrentados como portadores de transtornos psíquicos, pela medicalização ou pela senectude. Começávamos o período de encontro com uma roda onde promovíamos um rito de encontro, através de alguma dinâmica e um contato com a corporeidade, através de alongamentos ou trabalhos de expressão corporal, dentro das limitações. Nesta roda inicial, era comum instalar-se o caos, com as pessoas internadas entrando e saindo, desconcentração, desorganização. Mas com o tempo notamos um progresso, até que chegamos a ter este rito bem organizado, o que se refletia também na mesa de construção do painel. Esta construção também inicialmente refletia o nível de desorganização do grupo e aos poucos foi se transformando em um momento de encontro, conversas, troca de ideias que se refletiam ou não nos traços, cores e formas que eram criados com as tintas no papel. O resultado foi um grande e colorido painel, ainda hoje pendurado na parede da sala de atividades do IPq, mas outros resultados nos parecem tão importantes quanto esta obra. Um deles foi o desejo de alguns moradores de participar do projeto, organizando-se para estarem presentes semanalmente no horário estabelecido. Isto nos era trazido pela equipe de apoio que, inicialmente não tinha aproximação com nossos voluntários, mas que aos poucos se integraram também ao trabalho, de formas diferentes – mais solícitos, oferecendo mais apoio no traslado dos internos para o local, e outros sinais de aproximação.

Para os membros do Humanizarte o aprendizado foi enorme. A maioria não tinha jamais entrado em um ambiente asilar ou lidado com pessoas naquele nível de dependência. Enfrentando estes e outros desafios, desenvolveram vínculos com os moradores, propiciaram oportunidades de encontro, testemunharam o progresso do grupo. Com uma atitude profissional, cumprindo os horários e as visitas semanais, além dos encontros de formação continuada, o grupo compreendeu as possibilidades proporcionadas pela construção coletiva e que, mais importante que o produto, o processo de vida construtiva comum promovia, efetivamente, bem estar. O elemento gerador do bem estar no grupo como um todo eram o encontro, a presença, o vínculo afetivo, as conversas, o compartilhamento de confidencias, a construção da amizade, da camaradagem, como afirmava Laing (1973).

O projeto Arte no IPq, primeiro do Humanizarte, firmou-se desde então com várias ações planejadas sempre junto com os participantes do grupo como um todo. Após a construção do primeiro painel de desenho o projeto já trabalhou com produção de festa junina (2011), música (2012), dança e expressão corporal (2013) e teatro (2014). Em 2012 outra ação desenvolveu-se no âmbito do Humanizarte, no Hospital Santa Teresa. Este antigo leprosário, fundado em 1940 pelo presidente Getúlio Vargas, transformou-se, eventualmente, em um hospital geral com foco em dermatologia, mas sua configuração, em forma de uma pequena vila, com ruas e casas para moradores, bem como sua proximidade do IPq (está no município vizinho, São Pedro de Alcântara, a alguns quilômetros e na mesma estrada) propiciou que moradores do IPq em condições de relativa independência fossem para ali transferidos.

Renan Barros, então estudante de biologia da UFSC e membro do Humanizarte, sugeriu o projeto Horta com Arte, aceito com entusiasmo pelo então diretor do Santa Teresa o médico psiquiatra Henrique Tancredi. Com um pequeno grupo, Renan passou a trabalhar nos espaços abertos do Santa Teresa com os moradores interessados na construção de uma horta. A filosofia do Humanizarte foi mantida: o projeto foi elaborado com os moradores interessados, o privilégio sendo do processo, a construção em si é uma ferramenta para a produção social do bem estar individual e coletivo. A aprendizagem do participante do Humanizarte é potencializada pelas reflexões sobre o processo e no aperfeiçoamento da ferramenta, o que acontece nas reuniões semanais de planejamento e formação continuada.

Entrementes o serviço de psicologia do IPq propôs que o Humanizarte passasse a atuar em uma de suas duas unidades de gestão participativa (UGP) onde residem os moradores chamados de semi-independentes.

O objetivo explícito do Serviço é aproveitar possibilidades de desinstitucionalização destes residentes. Desde então, já sem a formação inicial, mas com a liderança de Renê Schleiniger dos Santos, então estudante de filosofia da UFSC, e participação de outros então estudantes como Bárbara Dias (psicologia) o Humanizarte atuou nesta UGP tendo já promovido oficinas de expressão corporal (2014), fotografia (2015) e encerrando seu vínculo com a instituição a partir do trabalho com horta (2016).

O trabalho do Humanizarte foi também requisitado por outros serviços e para ações pontuais e o projeto atende estas demandas sempre que possível. A condição é que a ação possa ser adequada à filosofia do projeto, que ofereça as condições necessárias à sua execução e que haja membros do projeto com tempo disponível para o planejamento e efetivação da atividade. Assim ocorreram o projeto Arte no CAPS Paloça, em 2013, respondendo a convite da Profa. Gabriela Luiza Campos, da Unisul e então mestranda do Programa de Pós Graduação em Saúde Mental e Atenção Psicossocial da UFSC. Ocorreram oficinas de dança, conforme decidido com as pessoas atendidas naquele CAPS, durante três semestres. A oficina levou a uma apresentação do grupo no Encontro Catarinense de Saúde Mental de 2013, tendo a Secretaria de Saúde de Palhoça uma presença como parceira. O projeto foi suspenso ao final deste período devido à ausência das condições mínimas de trabalho acordadas.

Outro projeto, iniciado em 2014, foi o Arte no CAPSi, por solicitação da Coordenadora do CAPS infant0-juvenil de Florianópolis, Fernanda Nicolazzi. Nesta ação os membros do Humanizarte atuaram nas oficinas lideradas pelos profissionais do CAPSi e oferecidas em grupos de crianças e adolescentes. O projeto não teve continuidade a partir do ano de 2015, mas não houve uma avaliação final em conjunto que proporcionasse uma visão do processo como um todo. Isto ocorreu embora não houvesse nenhum problema de relacionamento com a Coordenação ou com as pessoas que dialogavam com o Humanizarte representando as equipes.

Além destas, o Humanizarte atendeu diversas ações pontuais, apresentando-se em eventos atuantes da saúde, como a Semana da Fonoaudiologia, Encontros de Saúde em escolas do ensino médio e visitas a asilos de idosos, creches e outros estabelecimentos de saúde, alguns em conjunto com os Terapeutas da Alegria.